segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Uma Garota Dividida em Dois


Há alguns anos Claude Chabrol vem trabalhando em família, dividindo os créditos de seus filmes com sua esposa (roteirista), sua filha (cenário, figurino...), seu irmão (música) e rendendo filmes irregulares mas ainda assim cheios de interesse por seus personagens, de uma vontade latente de falar sobre a sociedade francesa, sempre com um quê hitchcockiano que só ele sabe trabalhar (muito longe das referência diretas de um De Palma por exemplo) dosando de maneira surpreendente sátira e suspense nesse que é possivelmente seu melhor filme desde Mulheres Diabólicas.

Uma Garota Dividida em Dois é uma metáfora absolutamente corrosiva sobre moralismo, puritanismo, hipocrisia, que faz belo par com A Última Amante de Catherine Breillat, mas que consegue ir muito além, graças aos diálogos impagáveis e a uma entrega profunda do filme ao caricato, ao extremo e as vezes até ao non-sense, sempre dando aos personagens a liberdade de se assumirem como bem quiserem, seja como reflexos ou representações das mais diversas camadas sociais, dilemas e comportamentos, mas sobretudo dessa complexa divisão entre verdade e mentira. Da mentira que há na verdade ou da verdade que há na mentira.

O filme abre com Charles, escritor, artista, libertário, já beirando os 50, que vive dividido entre a esposa "Santa", e suas aventuras sexuais com os amigos em um clube de swing. Corte seco para Gabrielle, jovem e bela garota da meteorologia e que desperta o interesse de grande parte dos homens, mas se interessa única e compulsivamente por Charles, por quem guarda enorme admiração e devoção, enxergando-o como um misto de pai (que nunca teve, sua mãe foi abandonada quando ainda era criança) e amante. Há por último Paul Gaudens, jovem e rico, que se apaixona por Gabrielle à primeira vista e fará de tudo para tê-la consigo.

O jogo de Chabrol, como não poderia deixar de ser é o da divisão. Não só a divisão de interesses dos personagens ou da narrativa em si, mas um jogo fortemente imagético de corte, de uma cisão quase cirúrgica. Em vários momentos vemos Gabrielle de alguma forma partida ao meio, seja através de reflexos no espelho, seja de algum truque de câmera, ao mesmo tempo que grande parte dos personagens se vêem diante de diversos dilemas também dividos por essa serra cortante que é o destino. Fato é que Gabrielle apaixonada por Charles irá superar algumas convenções e embarcar num jogo sexual com o escritor que ao bel prazer, fará dela uma espécie de brinquedo sexual, fuga para a santice de seu casamento ou para a reafirmação dele como macho, ainda que de meia idade. Charles porém nunca pensou em abandonar a esposa e acaba deixando Gabrielle sem chão. É ai que entra Paul (Benoît Magimel irrepreensível). Representação quase cartunesca de uma certa aristocracia européia, usa roupas extravagantes, um cabelinho chanel engraçadíssimo e com um comportamento na maioria das vezes explosivo, mas sempre com um humor meio agressivo, Paul se apaixona por Gabrielle e usará de todas as suas armas para conquistá-la, seja o dinheiro, seja a violência.

À medida que o filme prossegue, a teia de relações entre os personagens vai se complexificando. O passado dos personagens vai sendo revelado e Chabrol vai conduzindo seu filme para o cheque-mate decisivo. Em um dado momento, após revelar de maneira bem crítica e maldosa alguns aspectos da vida de Paul Gaudens, Charles é interrompido pela esposa que diz ser incapaz de julgar qualquer pessoa que seja. Essa incapacidade de julgar Claire (esposa de Charles) é a diese do filme, o fio condutor desse questionamento sobre o limite entre verdade e mentira e suas consequências, sobre esse moralismo burguês e um fantasioso jogo de aparências. Assim, a garota acaba sendo dividida em dois: da cintura pra baixo, o sexo sem limites, a incapacidade de se comunicar ou mesmo de raciocinalizar, o animalesco. Da cintura pra cima a consciência, as emoções afloradas, as dúvidas, os medos, o enfrentamento... O final do filme é impecável, com Gabrielle externalizando seus sentimentos, numa única lágrima que escorre de seu rosto enquanto ela é cortada ao meio. Metáfora poderosa, num filme que nos faz pensar num Chabrol em plena forma aos 78 anos de idade, um artista em grande momento criativo, num filme sobretudo perturbador, mas também libertador.

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