Sobre cinema, em
primeiro lugar
Saber olhar à sua volta com os olhos de cinema e tentar
aprisionar na câmera apenas o que pode ser filme é algo que Kleber parece saber
fazer muito bem. Por que O Som ao Redor
é um filme que propõe um movimento de experiência estética que desloca o
espectador de certo distanciamento e passividade, colocando-o num terreno ao
mesmo tempo familiar e incômodo, exatamente porque dilui a crítica e a
afetividade num mesmo recipiente, não nos confrontando moralmente com qualquer
daqueles personagens, mas nos colocando em pé de igualdade com eles. Afinal, o
que são aqueles personagens se não caricaturas de uma sociedade marcada por
movimentos históricos tão caros ao Brasil? A caricatura, é claro, não assume
tons de cinismo ou de desdenho: os personagens são o que são, pois vivem
naquele determinado lugar, envoltos em uma névoa historicista que molda as
ações de cada um. O ridículo que impõe o caricatural está menos na
representação do que na constatação de um estado de coisas, que revela um país caricato
por si só, que se desenvolve valendo-se de certos modelos de representação que
realçam o tom burlesco, farsesco do comportamento da sociedade brasileira como
um todo. Em O Som ao
Redor, a sociedade brasileira é uma paródia de si mesma.
Por isso, é interessante que a discussão em torno do filme
tenha se reduzido a questões de conteúdo pragmático, quando o seu grande mérito
está mesmo é na forma. É essa maneira de Kleber se relacionar com o cinema para
coletar as suas impressões sobre o mundo que faz o filme ser tão festejado
internacionalmente. Arrisco a dizer que o sucesso internacional do filme pouco
tem a ver com sua contundência social. O que impressiona mesmo é como Kleber
consegue criar um microcosmo de cinema que consegue dizer tantas coisas, de
maneira tão inventiva e apaixonada, com um misto de simplicidade e sofisticação
que poucas vezes encontramos no cinema brasileiro. Pois O Som ao Redor é, acima de tudo, um filme que se comunica muito bem
com seu interlocutor, que tem clareza no que quer mostrar, promovendo um
diálogo mais forte e menos pedante com seu público. Se há mesmo um trunfo, é o
de encontrar nos meandros do cotidiano algo que se pode chamar de potência
fílmica. E são poucos os cineastas que têm faro para isso.

Porque existem muitas influências em jogo, em O Som ao Redor. Nos zooms que lembram
Tarantino, mas são devotos mesmo é de Hong Sang-Soo. Na maneira como a
violência penetra silenciosa e invisível na vida dos personagens, tal qual nos
filmes de um Michael Haneke. Na relação vital que se tem com os espaços e na
câmera que acompanha menos os personagens e mais os próprios ambientes, algo
aprendido com o cinema de John Carpenter (o tal João Carpinterio que dá nome à
escola rural situada no engenho do personagem de W.J. Solha) – que, aliás, é
influência constante no filme, principalmente quando a câmera se movimenta
lentamente na iminência do horror, do suspense. Na montagem e no som, que são
Chris Marker, mas também são outros. Nas várias histórias e personagens que se
cruzam, ou não, numa espécie de multiplot à la Robert Altman. E há
também Eduardo Coutinho, nas fotos que abrem o filme, que são de Cabra Marcado pra Morrer, e funcionam
como espécie de prólogo do filme de Kleber. O
Som ao Redor está todo embebido do cinema consumido por Kleber ao longo de
todos esses anos. Entretanto, em momento algum Kleber usa essas referências
todas como muleta, ou de maneira enciclopédica. As citações e influências aparecem
de forma bastante orgânica, como um reprocessamento natural dos elementos que o
moldaram enquanto cineasta. É a experiência dele com o mundo que delimita a
experiência dele com o cinema.

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