segunda-feira, 4 de março de 2013

O Som ao Redor

Sobre cinema, em primeiro lugar


Sobre cinema, em primeiro lugar

Saber olhar à sua volta com os olhos de cinema e tentar aprisionar na câmera apenas o que pode ser filme é algo que Kleber parece saber fazer muito bem. Por que O Som ao Redor é um filme que propõe um movimento de experiência estética que desloca o espectador de certo distanciamento e passividade, colocando-o num terreno ao mesmo tempo familiar e incômodo, exatamente porque dilui a crítica e a afetividade num mesmo recipiente, não nos confrontando moralmente com qualquer daqueles personagens, mas nos colocando em pé de igualdade com eles. Afinal, o que são aqueles personagens se não caricaturas de uma sociedade marcada por movimentos históricos tão caros ao Brasil? A caricatura, é claro, não assume tons de cinismo ou de desdenho: os personagens são o que são, pois vivem naquele determinado lugar, envoltos em uma névoa historicista que molda as ações de cada um. O ridículo que impõe o caricatural está menos na representação do que na constatação de um estado de coisas, que revela um país caricato por si só, que se desenvolve valendo-se de certos modelos de representação que realçam o tom burlesco, farsesco do comportamento da sociedade brasileira como um todo. Em O Som ao Redor, a sociedade brasileira é uma paródia de si mesma.

Por isso, é interessante que a discussão em torno do filme tenha se reduzido a questões de conteúdo pragmático, quando o seu grande mérito está mesmo é na forma. É essa maneira de Kleber se relacionar com o cinema para coletar as suas impressões sobre o mundo que faz o filme ser tão festejado internacionalmente. Arrisco a dizer que o sucesso internacional do filme pouco tem a ver com sua contundência social. O que impressiona mesmo é como Kleber consegue criar um microcosmo de cinema que consegue dizer tantas coisas, de maneira tão inventiva e apaixonada, com um misto de simplicidade e sofisticação que poucas vezes encontramos no cinema brasileiro. Pois O Som ao Redor é, acima de tudo, um filme que se comunica muito bem com seu interlocutor, que tem clareza no que quer mostrar, promovendo um diálogo mais forte e menos pedante com seu público. Se há mesmo um trunfo, é o de encontrar nos meandros do cotidiano algo que se pode chamar de potência fílmica. E são poucos os cineastas que têm faro para isso.

Essa consciência da experiência do cinema faz com que o diretor não crie apenas um filme que é uma radiografia sobre uma classe média, sobre um Recife, ou sobre um Brasil. Kleber constrói um filme que é um feito exatamente por traduzir todo um contexto sócio-político através de uma dramaturgia do cotidiano transmutada para ser cinema, para provocar não só as discussões pelas quais a crítica brasileira de modo geral tem se debruçado (o coronelismo, a luta de classes, a violência e a transformação das cidades), mas para nos colocar diante disso que se chama de experiência do cinema. De uma relação que se dá com as imagens, e não somente com os temas.

Porque existem muitas influências em jogo, em O Som ao Redor. Nos zooms que lembram Tarantino, mas são devotos mesmo é de Hong Sang-Soo. Na maneira como a violência penetra silenciosa e invisível na vida dos personagens, tal qual nos filmes de um Michael Haneke. Na relação vital que se tem com os espaços e na câmera que acompanha menos os personagens e mais os próprios ambientes, algo aprendido com o cinema de John Carpenter (o tal João Carpinterio que dá nome à escola rural situada no engenho do personagem de W.J. Solha) – que, aliás, é influência constante no filme, principalmente quando a câmera se movimenta lentamente na iminência do horror, do suspense. Na montagem e no som, que são Chris Marker, mas também são outros. Nas várias histórias e personagens que se cruzam, ou não, numa espécie de multiplot à la Robert Altman. E há também Eduardo Coutinho, nas fotos que abrem o filme, que são de Cabra Marcado pra Morrer, e funcionam como espécie de prólogo do filme de Kleber. O Som ao Redor está todo embebido do cinema consumido por Kleber ao longo de todos esses anos. Entretanto, em momento algum Kleber usa essas referências todas como muleta, ou de maneira enciclopédica. As citações e influências aparecem de forma bastante orgânica, como um reprocessamento natural dos elementos que o moldaram enquanto cineasta. É a experiência dele com o mundo que delimita a experiência dele com o cinema.
  
Pouco se tem dito sobre O Som ao Redor ser, antes de qualquer coisa, um filme de alguém absolutamente apaixonado pelo cinema, pela experiência do cinema. É fácil constatar: basta voltar aos textos críticos de Kleber Mendonça Filho e à sua maneira, enquanto espectador, de apreender e experimentar os filmes. Kleber sempre se declarou, acima de tudo, um cinéfilo, daqueles que sentem literalmente tesão pelo que é cinema, pela maneira como o cinema e todas as suas ferramentas podem traduzir um certo "estado de espírito" diante do mundo. Esse tesão pelos filmes o coloca, tal qual um Tarantino, acima de tudo, como um cineasta/cinéfilo que reprocessa suas referências para criar algo que é inteiramente seu. Afinal, O Som ao Redor é talvez o grande tributo de Kleber a esse cinema que o excita, aos filmes e cineastas que, ao longo de todos esses anos, acompanhou de perto, e lhe deram uma noção concreta do que vem a ser esse tal de cinema contemporâneo.

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