O ciclo da imagem e o ressurgimento do cinema
“alimenta este fogo com fogo, até que se extinga e
obterás a coisa mais estável que penetras todas as coisas, e um verme devorou o
outro, e emerge esta imagem” (Abraham Eleazar)
Muito já se disse sobre o fim do cinema, sobre a
desmistificação da experiência cinematográfica e da sua desintegração a partir
da multiplicação da imagem. A limitação imposta ao longo desses anos pelo
cinema dominante - de que a imagem deve ser cada vez mais revestida de um manto
de realismo - impõe à imagem uma falsa noção de verdade, reduzindo o cinema a
uma espécie de simulacro. A imagem fílmica perde sua aura, sua fascinação
diante do mundo, para dar lugar a uma conceituação mimética da realidade,
provocando uma desorientação diante das novas perspectivas e possibilidades de
se vivenciar o mundo através das imagens atualmente. A experiência do cinema,
sufocada ainda pela pulverização massificada da imagem, provoca uma série de
sintomas que dizem respeito diretamente ao ver. Há que se assumir, então, uma
postura crítica diante da imagem nos dias de hoje. Ciente disso, Monte Hellman
busca redefinir, em Caminho para o Nada, as nuances que remodelam uma
nova ordem da imagem nos tempos atuais, mas que em momento algum decretaram o
fim do cinema enquanto ritual sagrado de apreensão de experiências fílmicas.
Por isso, o filme é, acima de tudo, sobre os valores adquiridos pelas imagens
hoje e sobre como elas se constroem até chegarem refletidas para o público. É,
portanto, um jogo de espelhos onde não sabemos mais o que é reflexo de quê. O
que é ilusão e o que é verdade.
Por isso, Caminho para o Nada é
essencialmente um filme sobre ver; sobre como e para onde direcionar o olhar
diante dessas imagens. Funciona da mesma maneira que boa parte dos filmes de
Abbas Kiarostami (Five, Ten, Shirin, ABC Africa), onde a
pedagogia do olhar convida o espectador a sair de sua posição de passividade,
desafiando-o, expurgando dele a sua posição de vouyer, e convidando-o a “ler”
imagens, e não apenas apreciá-las. Afinal, é preciso estar muito atento ao jogo
proposto por Monte Hellman - que é, no final das contas, o próprio jogo das
imagens - para que não se caia na armadilha de definir o filme apenas como
metalinguagem. Se há um jogo metalinguístico operado por Monte Hellman, antes
de uma referência ou uma homenagem ululante sobre o "fazer cinema", é
o de transportar o espectador para
dentro do filme, tirando-o de sua passividade através da ilusão da participação
estabelecida. O espectador toma para si o papel de hermeneuta que precisa
interrogar minunciosamente as entrelinhas da imagem para, quem sabe então,
decifrá-la.
Por isso, existem várias versões de uma mesma
história em jogo: 1) a estória de Velma Duran (Shanyn Sossamon) e Rafe Taschen,
escrita por uma blogueira; 2) o filme dentro do filme, dirigido por Mitchel
Haven (as mesmas iniciais de Monte Hellman); 3) o documentário produzido mais
tarde pela blogueira e 4) a reunião disso tudo que é o filme de Monte Hellman.
Esse jogo de espelhos põe em crise todas as camadas do processo fílmico,
captados por uma hibridez de formatos, gêneros e suportes, promovendo uma
espécie de desorientação da realidade fílmica, embaralhando nossas percepções
diante do mundo - e do cinema - e nos colocando em alerta diante da construção
dos discursos políticos e culturais através do uso da imagem.
Monte Hellman leva a discussão da margem, da
fronteira, a um outro nível de pensamento e reflexão. Não se trata de discutir
o que é ficção e o que é documentário, nem do ponto de convergência entre eles
- como muito se tem feito no cinema contemporâneo - mas de uma rarefação da
imagem a partir dos signos que ela propõe. A verdade da arte e não a verdade do
mundo, do outro. Afinal, mesmo a ficção dirigida por Mitchel Haven sendo
delineada a partir de uma série de conjecturas, de hipóteses enevoadas acerca
da morte de Velma e Rafe, existe antes uma verdade que parece indissociável do
filme, que é a de que Velma Duran e Laurel Graham são a mesma pessoa. É
Duran/Graham/Sossamon a grande força motriz do filme de Haven/Hellman, e é por
ela que a câmera irá se “apaixonar”.
A verdade está no corpo e nunca nos fatos. A
primeira sequência do filme de Haven se constrói exatamente a partir desta
idéia: plano longo de Duran/Graham/Sossamon pintando as unhas de vermelho
sentada à beira da cama. Se esse parece ser um plano que pouco ou nada diz
sobre a história, ou sobre os fatos, ele é, sobretudo, a imagem síntese desse
embate entre fato e ficção, verdade e mentira: quem está pintando as unhas?
Quem é aquela mulher? Qual das personagens ela está personificando ali? O que é
ela se não a própria materialização dessa fantasmagoria engendrada pelo cinema?
Hellman não nos dá respostas, ele apenas nos propõe dúvidas, perguntas.
Mas Caminho para o Nada é sobretudo um
filme político. Não porque sua história seja sobre uma ativista política que
lutou contra o regime cubano, mas porque Haven/Hellman conduz seu filme para um
outro escopo, que é o da câmera como artefato político, como arma que atira
verdades para o mundo. Imagens/projéteis disseminados, que nos revelam várias
facetas de um mundo completamente fragmentado e distorcido. Não é à toa que
Hellman povoa seu filme com câmeras, tvs de LED, lap-tops, celulares; são eles
o ponto de intersecção das elipses do filme, o ponto de encontro entre passado,
presente e futuro, embaralhando as noções de tempo e espaço.
Essa relação estreita com a tecnologia, e com a
maneira com que as imagens são apreendidas e disseminadas, aproxima o filme a,
por exemplo, Redacted, de Brian de Palma. Em Caminho para o Nada, uma garota interiorana do sul dos Estados
Unidos posta uma série de fatos e estórias sobre a morte conturbada e obscura
do casal Velma e Rafe num blog na internet. É esse o ponto de partida para a
realização de um filme que começa como um documentário para, aos poucos, tornar-se
uma ficção. Em Redacted, De Palma parte de um vídeo postado em um blog para
ficcionalizar uma verdade, criando uma ficção que é ela mesma a reconstrução de
um fato, de uma verdade até então escondida e negligenciada. Ao percorrerem
caminhos semelhantes em busca de suas respectivas verdades fílmicas, De Palma e
Hellman parecem nos dizer que o cinema pode ser, sim, um espelho do mundo e da
vida. Ainda que os fatos sejam secundários, é a forma quem nos conduz para uma
verdade insondável, para uma verdade que está além da superfície.
Caminho para o Nada é, portanto, um filme
autofágico, que reprocessa todos os procedimentos, formas e técnicas para criar
um corpo de cinema. Um corpo vivo de cinema, que respira, que abre suas
entranhas para revelar-nos suas vísceras, suas articulações, órgãos, seu
espírito, enfim. Tal qual Two-Lane Blacktop, onde o cinema engole a
dramaturgia através da combustão do filme para nos dizer que o filme acaba, mas
o cinema e a vida continuam. Personificação das ouroboros - serpentes
que devoram sua própria cauda - Caminho para o Nada reflete um estágio
fecundo do cinema, uma evolução, experiência alquímica de renovação, de
transcedentalização. É a resposta de Hellman para aqueles que dizem que o
cinema está para morrer. Quando, o que ele quer mesmo, é viver.